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Movências e mutações: um caminho na (re)construção da identidade social.

 

Manuel J. P. Fernandes

profmanuelfernandes@gmail.com

 

 

De certa forma, o que está escrito abaixo é uma tentativa de socializar um pensamento que me vem perseguindo faz um certo tempo. Talvez seja um projeto de pesquisa. Ou uma simples provocação para mim mesmo e para aqueles que se interessam pela temática dos Movimentos Sociais. Mas, como não costumo guardar esses pensares, prefiro compartilhá-los. Deixo-os aqui explicitados.

 

Tenho que apresentar uma primeira e fundamental questão: o que quero significar com estes vocábulos? Eles aparecem, assim, como surgindo do nada, vão começando a ganhar forma em minha mente e se desenvolvem como resultado da necessidade de esclarecimento que procuro. Estes vocábulos, por sua vez, decorrem da análise de um processo histórico específico: a ação dos Movimentos Sociais. O entendimento de que o gerador das demandas dessas ações é o desenvolvimento das contradições históricas dentro de uma sociedade determinada é importante para que elas atinjam seus fins. São essas ações quem, mais adiante, vão provocar o recheio ideológico para os diferentes agentes sociais envolvidos na satisfação dessas demandas. São esses agentes que, muitas vezes, passam a acreditar que foram suas “idéias” que geraram o movimento a que, aqui, chamo de movências e mutações. São eles, ainda, quem ajuda a simbolizar uma alternativa social a essa outra, nucleada, excludente, que o capital nos oferece.

 

“É através do simbólico que os grupos sociais elaboram suas identidades” afirma Melo Neto (2006:45). O simbolismo, no homem, pode ser traduzido pelo que ele diz, pelo que ele pensa e pelo que ele faz, pois é através dessas ações que ele cria e recria a sua identidade pessoal e do grupo a que pertence.

 

Para dizer, ele precisa saber. Para pensar, ele precisa estar instrumentalizado. Para fazer, ele precisa ter onde e como. É dentro deste contexto que podem acontecer as movências e as mutações possíveis na (re)construção das identidades sociais.

 

Por movências, entendemos a capacidade que cada um dos seres sociais comporta em si de estar em permanente movimento na busca por novos conhecimentos. Por mutações, entendemos as mudanças de sociabilidade que esse mesmo conhecimento pode produzir naquele que pratica essas movências. A (re)construção, aqui focada com o duplo sentido que a grafia empresta ao conceito, deve ser encarada como ação legítima tanto do indivíduo isolado, em grupo, ou com o apoio de movimentos sociais que lhe apresentem as possibilidades de se iniciar nessa empreitada que nem sempre é fácil e ao alcance de todos. A identidade social deve ser percebida, neste trabalho, de acordo com Calado (1999:23)[1], como realidade que “implica, de um lado, o esforço de identificar e superar adversidades interpostas a tal caminhada, e, de outro, perseguir determinado alvo, objetivos ou mesmo um projeto alternativo ‘ao que aí está’”.  Quando falo de identidade refiro-me àquele sentimento “que desperta, no indivíduo, o sentido de pertinência: a identidade na família, a identidade no bairro, no partido, no país e até a identidade com o time de futebol de que eu gosto” (Hurtado, 2000,25). Sem esse sentimento de pertencimento, o homem desvaloriza-se, visto que a “desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento do mundo das coisas” (MARX, 1979:90), com as quais ele não se identifica e nem contribui na sua construção.

 

Hoje, a nossa sociedade é uma sociedade desesperada, ansiosa por saber mais, mas sem rumo certo para encontrar um norte que a direcione. Esse rumo não lhe é dado pela escola, pois “o que menos faz a educação formal é preparar para a sobrevivência, em um mundo competitivo onde parece imperar cada vez mais abertamente a lei da selva” (Razeto, 2000:60). Logo, afirmar que a escola não está desempenhando de modo satisfatório a função social que dela se espera, a de preparar o sujeito para a vida e para o trabalho, não é boataria. Quando muito, prepara-o para a servidão ao capital e o expõe aos óbices que esse mesmo capital cria à sua progressão na escalada social. Vemos jovens e menos jovens entrar em quase desespero por não encontrarem esse rumo. Como nos diz Boneff[2]:

 

Talvez seja melhor falar em juventudes e alternativas existentes diante de um mercado árido e desigual, esfinge que propõe o enigma insolúvel: se não tem experiência, não trabalha; se não trabalha, não tem experiência. Nessa relação paradoxal, ressoam palavras como desemprego, subemprego e informalidade. Mas, felizmente, aparecem também opções como economia solidária, associativismo e empreendedorismo responsável.

 

Para se dar conta de tais opções, devem entrar em cena, neste momento, os mais recentes atores que têm um papel preponderante a desempenhar nesta trama urdida socialmente: de um lado, os movimentos sociais organizados e, de outro, a extensão universitária. Não como “salvadores da pátria”, mas como facilitadores de aquisições sócio-culturais capazes de reverter um pouco a situação desesperançosa em que se encontra a sociedade. Mas nem tudo são facilidades, ambos enfrentam dificuldades para colocar em prática essa função nobre de que desejam incumbir-se. Os primeiros, essencialmente voluntários, deparam-se com as barreiras impostas até mesmo por aqueles a quem buscam ajudar. É que, num mundo de exploração em que a sociedade está habituada a viver, receber algo sem ter que dar outra coisa em troca é fato raro nesse contexto. É comum que se crie uma resistência a esse engajamento voluntário, principalmente com o receio de que esse “benfeitor” venha depois a cobrar seus dividendos. Estão nesse caso, as desconfianças de que alguém que está a oferecer ajuda desinteressada “é candidato a alguma coisa”. Se por um lado essa postura mostra um certo amadurecimento em relação a práticas políticas não tão distantes de nós, por outro lado são um primeiro e bastante convincente argumento para que seja negada a aceitação desse trabalho voluntário. Do outro lado está extensão universitária que, mesmo estando configurada como um dos pilares que constituem o tripé sobre o qual se firma a função social da universidade, não está sendo exercida com a eficiência desejada, uma vez que a própria universidade tende a fechar-se sobre si mesma, por um processo de quase endeusamento do seu saber e do seu fazer. Certamente que não podemos generalizar esta assertiva, mas somos compelidos a afirmar que um número significativo de universidades age desse modo, infelizmente.

 

Há, portanto, que romper com essas práticas. É preciso romper com o passado para construir permanentemente o presente na busca por um futuro que se anunciará promissor. Esse rompimento é a forma mais adequada para que se possa fazer a transição passado/futuro, lembrando que o presente deve fazer objeto de uma ação que represente, de uma só vez, o gozo e a projeção planejada; o gozo ou usufruto das melhorias que se alcançarão através das lutas, a projeção planejada que seja capaz de apontar uma perspectiva de vida melhor para as atuais e as novas gerações. Tudo isto representa e afirma uma identificação do respeito pela ação que há muito nos é negada. Esta identificação só será possível através da “crítica social do vivido” (Sosa, 1996:27)[3] posta em prática a partir da tomada de consciência que um outro mundo, uma outra sociedade, é possível. Essa crítica deve ser desenvolvida ao longo das relações e articulações sociais.

 

A crítica social do vivido pode ser praticada sem se ser violentado?

 

Se tomarmos como campo empírico de análise o nordeste brasileiro, cenário do qual me aposso para tal realização analítica, verifico com facilidade que tal crítica não fez parte do tempo histórico transcorrido desde o momento da descoberta do Brasil até bem pouco tempo atrás. A história social desta região me permite responder à questão levantada com uma contradição (o sim e o não). Esta contradição é, entretanto, justificável atendendo a recortes específicos dessa temporalidade. Por outro lado, nem preciso falar apenas da violência real (aquela em que os meios mais drásticos são empregados: polícia, armas, revoltas etc.), pois são freqüentes as violências simbólicas (negação de direitos, desrespeito e insensibilidade para com o sofrimento das maiorias etc). No caso da violência real, usada durante períodos isolados da nossa história, a sua prática nos dias atuais pode ser vista como um fator ultrapassado que impedia essa crítica social do vivido. Neste caso posso responder com um sim à nossa questão. Mas, na contramão do desenvolvimento, a violência simbólica tem-se acirrado nas últimas décadas em função da política neoliberal que impõe ao cidadão um Estado mínimo transformado na antítese do Estado de Bem Estar social e “(...) que oscila ao sabor dos vendavais neoliberais” (Brito, 2003:195). Por essa ótica, a resposta só pode ser negativa. Não há como exercer a crítica social do vivido sem se ser violentado. É preciso responder a essa agressão com ações revolucionárias na “(...) tentativa de superação da violência do domínio de classes sobre outras classes, na visão marxista (...)”, que será constituída “(...) do movimento de uma classe que é maioria, expressando-se através de ações contra as formas de violência geradas da desigualdade entre classes” (Melo Neto, 2006:50).

 

Neste contexto, e em posição de auto defesa, resta ao cidadão a tentativa da organização em grupos de interesses para que possa exercer de modo mais efetivo a sua crítica ao social. Destas organizações surgem os movimentos sociais que se caracterizam pela postura de “oposição/negação ao Estado em resposta às condições precárias da vida urbana, à repressão do Estado e à supressão das formas tradicionais de organização política” (Ricci, 2000)[4]. Estes movimentos são a forma mais desenvolvida de ação comunitária, regional ou nacional. A ação destes movimentos é bem diversificada e estende-se por todas as regiões do mundo conhecido. Não se trata, portanto, de nenhuma característica dos ditos países subdesenvolvidos como pode, aparentemente, ser interpretado. Assim, e apenas para exemplificação, podemos citar aqui a CPE - Coordination Paysanne Européenne (Coordenação Camponesa Européia); FFQ - Fédération des femmes du Québec (Federação das Mulheres de Quebec – Canadá); Greenpeace (talvez o maior e mais abrangente representante desses movimentos), que são a tradução dos movimentos sociais em países desenvolvidos.

 

Esta existência globalizada dos movimentos sociais, principalmente das organizações comunitárias, surge em setores específicos da sociedade para fazer frente a problemas bem caracterizados. Embora elas estejam ativas em todos os domínios, são mais freqüentes nos casos em que a população se organiza na luta por melhorias na educação, no alojamento, na segurança, na saúde comunitária, ambientalismo e, até, na busca pela geração de renda. Não posso deixar na beira do caminho as organizações sociais que lutam contra a política neoliberal e suas conseqüências que, na realidade, estão na base de todas as lutas que aqui apresento. Acredito não errar ao afirmar que, um pouco por todo o mundo, os cidadãos buscam organizar-se e mobilizar-se por dois motivos essenciais: opor-se, através de idéias e ações, a todas as formas de regressão social e, por outro lado, buscar alternativas que os liberem da exclusão que lhes destina a política neoliberal burguesa que hoje domina o planeta.

 

É, pois, no interior destes movimentos que acontecem as movências e as mutações. Através delas é possível se alcançarem zonas de autonomia, novas formas de sociabilidade que não nos permitem as atuais leis ou normas sociais em vigor. Vale ressaltar que ambas, movências e mutações, têm que caminhar em perfeita sintonia e modo complementar, pois movimentar-se e não se transformar pode, no máximo, representar um bom exercício físico, mas não se atingirá o objetivo desejado.

 

Uma análise sociológica dessas atitudes, “moventes e mutantes”, coloca no tapete do jogo social a questão da identidade, isto é, permite uma visão mais aguçada da (re)construção dessa identidade social desvalorizada ou estigmatizada, características marcantes da atual identidade social das camadas desfavorecidas. Devemos ter presente que uma identidade social se define em relação aos traços objetivos impostos pelo julgamento de valores que é realizado por diversos atores sociais e tem como função atestar o pertencimento do cidadão a este ou aquele grupo social. Normalmente, esses “julgamentos” tomam por principal peça de acusação, para elaborar uma sentença, um processo de reconhecimento do próprio julgado como pertencente a este ou aquele grupo social. Como a auto-estima do cidadão anda em baixa, o “juiz” aproveita-se da auto-proclamação de pertencimento a esta ou aquela classe social para emitir seu parecer que assume a posição de documento oficial de identidade do julgado. Uma vez rotulado “oficialmente”, para se livrar desse estigma, o cidadão precisa empreender uma luta feroz contra um inimigo potencial (a sociedade como um todo) e suas chances de sucesso estão limitadas por uma correlação de forças que só pode pender a seu favor através de uma coalizão popular que buscará, pelo enfrentamento, uma prática que também é ideológica, restabelecer a ordem escalar social. A ação coletiva deve ser aproveitada como a oportunidade que se apresenta de transformar, de redefinir, essa identidade social constituída. Dois bons exemplos dessa redefinição de identidade social, no Brasil, são o movimento negro e o movimento feminino. Em ambos, através de ações positivas, os pertencentes a esses grupos têm alcançado novas posições na escala social que antes lhes era desfavorável em virtude de “julgamentos” sociais que os desvalorizavam. Nestes dois casos, a guerra ainda não foi vencida, mas muitas lutas têm tido desfechos favoráveis aos excluídos. A luta precisa consolidar-se, continuar permanentemente.

 

Acredito, então, que a principal função dos movimentos sociais deva ser a luta pela reconstrução da identidade daqueles a quem defende, visto que, uma vez restabelecida a real identidade, fica mais fácil o engajamento em outras lutas que levem à melhoria social desses (re)socializados.

 

Mas, qual a primeira linha de ataque que os movimentos sociais devem desenvolver?

 

Esta é, sem dúvidas, uma questão bastante complicada de responder, levando em conta o nível de carência que a nossa sociedade, excluída, apresenta. Mas, a educação, sempre ela, parece-me um bom início. Não aquela educação que as elites dominantes nos oferecem, quase como benesse, e que, na sua raiz apodrecida pela ganância capitalista, carrega para os nossos ouvidos uma melodia suave e relaxante que tem o dom de nos adormecer perante a realidade mais dura que ela dissimula. Não é, pois, essa a educação que moverá ou fará estremecer a escala social imposta. A educação que tem a possibilidade de (re)fazer caminhos, apontar nortes, criar possibilidades, é a educação popular. No atual contexto, parece-me ser esta a educação que mais poderá contribuir para as movências e as mutações que é necessário realizar na sociedade excludente que vivenciamos, pois ela, “muito mais através de ações que de palavras (...) objetiva democratizar a sociedade e o Estado, mediante a formação de hábitos, atitudes, posturas e gestos democráticos, dentro dos grupos onde atua” (Rodrigues, 1999:23, apud Melo Neto).    

 

Mas, educação popular, à qual também chamo de educação popular comunitária, é todo um outro assunto que procurarei desenvolver em um outro artigo. Com este trabalho aceitei o desafio provocativo que me propus ao iniciá-lo. Acredito tê-lo vencido, pois, através dos ensinamentos que os autores referenciados me proporcionaram consegui refletir sobre as movências e as mutações que são plausíveis e necessárias na atual sociedade. Com ele aprendi também que muito mais que escrever é preciso agir, tomar nas mãos esta causa e desenvolver atividades capazes de contribuir para a transformação social, que deve ser gradativa e permanente para que os resultados possam surgir.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BONEFF, Alfredo. O jovem desafio do trabalho. Artigo publicado na Internet no site: http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=837, acessado em 25/11/06.

 

BRITO, Célia Maria Machado de. Movimentos Sociais, ONG’s e Terceiro Setor: uma nova leitura do fazer política. IN: MATOS, Kelma S. L. de (Org). Movimentos Sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade. Fortaleza: Editora UFC, 2003.

 

HURTADO, Carlos Nuñez. Educação popular: participação, exclusão na América Latina hoje. IN: SOUZA, João Francisco de. PORTO, Zélia Granja (Orgs). Educação Popular: Participação, exclusão na América Latina hoje. Recife: Edições Bagaço, 2000.

 

MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. In: FROMM, Erich. Conceito Marxista do homem. Rio de Janeiro (RJ): Zahar Editores, 1979.

 

MELO NETO, José Francisco. Extensão Popular. João Pessoa: Editora Universitária, 2006.

 

PRESTES, E. M. da Trindade. Os novos e velhos movimentos sociais no Nordeste do Brasil: histórias fragmentadas de submissão e rebeldia. IN: SCOCUGLIA, A. C; JEZINE E. (Orgs.). Educação Popular e Movimentos sociais. João Pessoa: UFPB/CE/PPGE – Editora Universitária, 2006.

 

RAZETO, L. Educar para a subsistência e a solidariedade: requisitos de formação e capacitação para o mundo do trabalho autônomo e associativo In: SOUZA, João Francisco de. PORTO, Zélia Granja (Orgs). Educação Popular: Participação, exclusão na América Latina hoje. Recife: Edições Bagaço, 2000.

 

RODRIGUES, Luiz Dias. Como se conceitua educação Popular. In: MELO NETO, José Francisco & SCOCUGLIA, Afonso Celso Caldeira. Educação Popular – outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999

 



[1] Apud Melo Neto (2006:14).

[2] Boneff, Alfredo é jornalista e colaborador do Ibase. Artigo publicado na Internet no site: http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=837

 

[3] Apud PRESTES, E. M. da Trindade (2006,13).

[4] Apud BRITO, 2003:186.