Um primeiro artigo para saborear o efeito da publicação on-line.
Crise de Identidade social coletiva e trabalho |
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Por: Manuel J.P. Fernandes |
RESUMO:
Este artigo pretende abordar a relação entre trabalho e a construção de uma identidade social coletiva pelo trabalhador. Para tanto, recorremos a uma análise bibliográfica sobre a qual tecemos as nossas considerações finais a respeito da temática.
Palavras-Chave: Identidade social coletiva, trabalho, crise.
1. INTRODUÇÃO Acreditamos que seja útil, inicialmente, tentar esclarecer os contornos conceituais que desejamos dar a “identidade social coletiva” e, mais especificamente, como ela se desenvolve no mundo do trabalho, antes de tentarmos clarificar a articulação que desejamos fazer entre estas duas categorias de análise. Como ponto de partida para esta análise que nos propomos efetuar, tomamos os estudos já realizados por alguns dos pensadores que se têm destacado nessa área de discussão. Assim, nossa escolha inicial recai sobre Brandão (1986), Alves (1997), Guattari (1986), Dubar (2000), Lessa (1997) e, claro, não podemos deixar de abordar, com a profundidade necessária, as teorias de Weber, Luckács e Marx. Esta indicação inicial não esgota as possibilidades de análise de outros conceitos e opiniões expressas por outros pensadores, pois ela representa, apenas, um indicativo do marco teórico que desejamos desenvolver. Para Weber (1921, apud Dubar, 2000) existe uma distinção que caracteriza as configurações típicas e históricas de identidade. Segundo ele, de um lado, estão as formas a que chama de “comunitárias”, que representam “as relações sociais fundadas sobre o sentimento subjetivo (tradicional ou emocional) de pertencer a uma mesma coletividade”. Do outro lado, estão as formas a que chama de “sociais”, que designam as “relações sociais fundadas sobre o compromisso ou a coordenação de interesses motivados racionalmente”. As primeiras caracterizam a força da tradição, isto é, a herança cultural acumulada historicamente. Este tipo de identidade é marcante, principalmente, nas relações familiares e nos laços afetivos intensos que ali se desenvolvem. As segundas representam muito mais as questões valorativas racionais no envolvimento mútuo dos seres sociais. Elas podem ser traduzidas pelas associações voluntárias de indivíduos em torno de um mesmo interesse, como são, por exemplo, os sindicatos, as ONG’s etc. A identidade social coletiva que aqui desejamos abordar é aquela construída, ou destruída, no/pelo trabalho. Para isso, trabalharemos na perspectiva marxista desse segundo conceito e, mais especificamente, naquela de Lukács, para quem o trabalho “é uma categoria social”, na qual “a delimitação de suas conexões internas requer contínuas referências a mediações que articulam trabalho e totalidade social, notadamente através da categoria social da reprodução” (apud Lessa, 1997:17). É através do trabalho que o homem “ao agir no dia-a-dia, concomitantemente se constrói enquanto individualidade e contribui para a reprodução da sociedade à qual pertence – e ao fazê-lo, sofre as conseqüências das suas ações” (Lessa, 1997:116). Nesse sentido, compreendemos que, pelo trabalho, o homem constrói a sua identidade social individual e coletiva. Para este estudo, partimos da premissa que a dificuldade que o homem encontra hoje de desenvolver atividades produtivas, pela escassez de trabalho/emprego, provoca nele uma crise de identidade. Esta crise acentua-se ainda mais quando percebemos que a classe jovem é, de alguma forma, a mais diretamente atingida nesse processo de gestão da crise de identidade. Necessário se faz, portanto, criar meios que permitam a reconstrução dessas identidades em crise, ver mesmo em estado de falência. Construir uma nova forma de identificação, que se torne dominante, implicará o princípio da auto-afirmação, através de ações reflexivas sobre si mesmo, colocando em destaque o que se deseja fazer e não aquilo que possa representar um idealismo interior. Tal forma de reconstrução identitária passa, obrigatoriamente, pela determinação de uma vocação, de um projeto profissional que precisa, ele também, de ser construído. Um modelo de identificação social deve colocar em primeiro plano a dimensão dinâmica de identidade, pois, segundo Benedicto (2004), “todos os dias, em todas as interações, por todos os meios, você está redefinindo a sua identidade. É claro que a identidade básica não muda. Aliás, é a repetição de um padrão estável que possibilita a identidade”. Portanto, a necessidade de haver uma relação intrínseca entre o que se faz e a sociedade, enquanto meio no qual esse fazer se desenvolve, é algo imperioso. Como nos coloca Cavalcanti, “(...) para construir identidades, é indispensável participar ativamente da teia de relações sociais de produção”. 2. A CRISE 2.1. A origem De acordo com Gramsci (apud Hamon, 2007) a crise é ”la période qui caractérise le moment où le vieux est mort et le neuf hésite à naître“. Numa tradução livre, nossa, isto significa dizer que “a crise é o período que caracteriza o momento em que o velho está morto e o novo exita para nascer”. Embora a crise apontada por Gramsci, neste específico, possa ser mais identificada com o político, nós adotamos este conceito para qualquer tipo de crise que envolva o trabalhador e suas relações sociais, principalmente no estabelecimento de vínculos com o mundo produtivo. Para Sarriera, (1996), o “vínculo (trabalho) pessoa-sociedade possibilita um sentido de participação e utilidade” (p. 92). É Sarriera, ainda, quem afirma que O trabalho poderá ser estruturante da identidade se puder proporcionar ao jovem um sentido de vida, facilitando suas escolhas profissionais à medida que possa ser fonte de informações e aprendizagem, além de permitir novos contatos sociais, ampliando a sua rede de amizades e a social.
O trabalho deve ser, portanto, visto e analisado como fonte de satisfação e realização do bem comum e não como instrumento de alienação. Nesse sentido, Sarriera levanta um questionamento que nos parece pertinente: “os jovens poderão encontrar o sentido de vida frente à possibilidade de desemprego ou de um trabalho precário e de pouca qualificação”? (idem). Esta é uma realidade que em hipótese alguma deve ser desprezada. E não são apenas os jovens, que buscam seu primeiro emprego, quem passa por essa situação. Acreditamos também que, aqueles que já constituíram uma família e enfrentam a situação de desemprego ou o trabalho precário possam também sentir, e em grau de intensidade maior, tal situação. Portanto, não será idiossincrático de nossa parte afirmar que a crise de identidade social que o trabalhador enfrenta está diretamente relacionada com a chamada crise da sociedade do trabalho. O sintoma da crise é, portanto, o declínio das velhas identidades, pautadas em paradigmas de classe – enquanto trabalhadora e explorada; de estabilidade – em vista da realidade de alto desemprego; e, até mesmo da fragmentação – perante a ruptura de sociabilidade do trabalho e da perda de valores que cada indivíduo defende – uma vez que a identidade deve ser a base estabelizadora e localizadora do sujeito em si e no mundo. Depreende-se, entretanto, que essa crise de identidade social que pode ser detectada não se esgota nela própria, pois ela pode ser também fruto do que não se tem, do que nos falta, porque nunca se teve ou porque se perdeu.
2.2 Construção da Identidade social ou narrativa do “eu”
Compreende-se assim que o conceito de identidade social seja a unificação da “narrativa do eu”, construída por cada ser social no e pelo trabalho, e que o homem contemporâneo, face às contingências impostas pelo capital, vive em permanente confronto com uma multiplicidade de identidades possíveis e mutantes, com as quais temporariamente pode definir-se, sem que, com tal procedimento, haja uma tipificação definitiva dessa identidade social. Compreendemos que “a identidade é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros estes que podem ser imaginários” (Guattari & Rolnik, 1986: p.68). Analisando ainda um pouco mais as palavras de Guattari, compreendemos ainda que “a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável.” (id, pp. 68-69). É, portanto, neste sentido que entendemos a identidade social como um produto relacionado às possibilidades de mutação advindas dos diferentes processos sociais que cada ser social interioriza, principalmente através do seu engajamento ou não no processo produtivo, tendo em vista que o trabalho é aqui analisado como processo identificatório que está relacionado ao reconhecimento social do trabalhador, como cidadão e o dispositivo central de integração social deste. Destarte, quando o ser social faz de si um retrato, pode apresentá-lo das mais variadas formas: em preto e branco, colorido, no formato 3x4 ou em corpo inteiro. É a sua maneira de identificar-se perante os demais componentes de uma sociedade. Essa apresentação está bem patente na elaboração do seu curriculum vitae, no qual, após a descrição da sua origem, esse ser social passa a mostrar as suas qualificações para o trabalho e as funções já desempenhadas. As tonalidades e o tamanho dessa apresentação dependem, a nosso entender, do “estado de crise” em que esse ser social se encontra, pois, segundo Brandão (1986), "não é fácil separar a dimensão individual da construção e do exercício cotidiano da identidade de sua dimensão social".
3. CRISE DE IDENTIDADE SOCIAL E TRABALHO
Podemos encontrar em alguns autores afirmações que demonstram que “as alterações no paradigma produtivo repercutiram sobre a própria centralidade do trabalho, como categoria ordenadora do social e fornecedora de identidades nas sociedades modernas” (Offe:1989; Meda:1995). Assim, tanto para homens quanto para mulheres, o trabalho transforma-se num mediador insubstituível na construção da emancipação e no exercício dos seus direitos cívicos. O trabalho, entretanto, pode ser alienante, na medida em que “a alienação [corresponde] ao momento da ação de retorno do produto sobre o indivíduo agente” (Lessa, 1997:118), mas também pode ser um poderoso meio de reapropriação da consciência de si, a partir de uma postura mais crítica do trabalhador. Um desses processos de alienação pode ser traduzido pela existência de contratos de trabalho por tempo determinado, ou precarizados, pois estes atingem de forma direta a construção da identidade do trabalhador, pela falta de uma certeza de continuidade na obtenção dos meios financeiros necessários à manutenção da sobrevivência digna. Assim, precisamos questionar: Como se podem construir identidades em atividades temporárias ou se revezando entre o mercado formal e o informal? Qual o impacto que essa descontinuidade opera no sistema identitário do trabalhador? Para responder à primeira questão é preciso não temer dizer que, nessas condições, há, antes, uma desconstrução que a construção de identidades mais firmes e que, para reverter essa situação se deve compreender a necessidade de utilizar estratégias capazes de “focar as mudanças num contexto mais amplo de modernização das relações de trabalho e de combate à pobreza e à exclusão social” (Alves, 1997:31). Para responder à segunda questão, precisamos compreender que com o ingresso no mercado de trabalho formal ou informal, os trabalhadores passam a ter uma nova condição dentro da sociedade, já que, em vez de apenas consumidores, passam a ser produtores de rendimentos, agregando a identidade social de trabalhador a suas outras identidades. O ato de desempenhar uma atividade remunerada pode ser apontado como um marco identitário na biografia dos sujeitos, pois através dele estabelece uma ruptura com a fase anterior ao ingresso no mercado de trabalho e dá início a nova etapa de satisfação de algumas das necessidades básicas para a sua vida social. No entanto, a cada ruptura que possa ocorrer nesse ato, e dependendo do período que o trabalhador atravessa na condição de desempregado, alterações significativas acontecem na sua identidade social, pois perde parte da autonomia que conquistara ao ingressar no mercado de trabalho. Desta forma, os indivíduos que se encontram nessa zona liminar, podem vivenciar certa invisibilidade social, pois, nesse momento, não possuem identidade que lhes proporcione um corpo socialmente visível (Van Gennep, 1978; Turner, 1967).
4. À GUISA DE CONSIDERAÇÕES NÃO CONCLUSIVAS Asseverar que o trabalho está diretamente relacionado com a construção da identidade social do ser humano trabalhador não nos parece mais um pensar estranho. Mesmo sabendo que “outras identidades” podem ser construídas por esse ser humano, a identidade social da classe trabalhadora só pode ser construída nessa condição objetiva e invariante de inserção no sistema produtivo. De tal modo, a inserção e a continuidade, nesse sistema, são tão importantes que, se em algum momento houver uma forte ruptura desse processo de continuidade, podemos observar na classe trabalhadora fenômenos que podem ser considerados quase patológicos, diante das transformações pessoais que ocorrem. Não é difícil observar e compreender as mudanças comportamentais bruscas que são registradas naqueles que enfrentam esse processo de ruptura em sua relação dentro do sistema produtivo. Na história social do Brasil são vários os exemplos de pessoas que, após perderem seu emprego, se suicidam. Recentemente ficou macabramente marcado o caso dos funcionários do Banco do Brasil que, após terem perdido seus empregos se suicidaram. Atitudes deste gênero ajudam-nos na consideração que desejamos fazer: há uma estreita relação entre trabalho e identidade social do trabalhador. REFERÊNCIAS ALVES, Edgard L. G. (org). Modernização produtiva e relações de trabalho: perspectivas de políticas públicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. BENEDICTO, Marcos de. Grife religiosa: como manter a identidade cristã-adventista num mundo plural. Texto retirado da Internet em 02/04/07 no site http://www.unasp.br/kerygma/artigo2.02.asp. BRANDÃO, Carlos R. Identidade e Etnia. Construção da Pessoa e Resistência Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986. DUBAR Claude. La crise des identités. L’interprétation d’une mutation. Paris: PUF, 2000. CAVALCANTI, Patrícia Barreto. A constituição da Identidade e o Exercício da Autonomia Profissional. Texto retirado da Internet em 02/04/07 no site http://www.indexbrasil.net/print.php?type=A&item_id=1494 GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. HAMON, Benoît. L’echec des orientations macro-économiques de l’Europe. Paris: Jornal L’Humanité, 24 março 2007. LESSA, Sérgio. Trabalho e ser social. Maceió: EUFC/EDUFAL, 1997. MEDA, Dominique. Le Travail. Paris: Aubier, 1995. OFFE, Claus. O Capitalismo desorganizado. SP: Brasiliense, 1989. SARRIERA, J Castellá (et alli) . Formação da identidade ocupacional em adolescentes. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Texto retirado da internet no site: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v6n1/5330.pdf, em 02/04/07. TURNER, V. Betwixt and Between: the liminal period in Rites de Passage. In: Turner, V. The forest of symbols: aspects of the Ndembu ritual (pp. 93-111). Ithaca: Cornell University Press, 1967. VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978. |